Eram oito da manhã e já sentia culpa. Era a culpa das manhãs.
Sentada no banco de metrô, encontrava o olhos de uma senhora: negros e intensos. Ela queria o lugar, bem sabia. Naquele jato intenso de olhares, sem tréguas, não conseguia fixar seus olhos nos dela por mais de dois segundos.
De início, foi um bocejo que lhe deslocou os olhos, depois que notou que o bocejo não seria suficiente, foi um livro que com muito alívio achou entre seus pertences, dentro da bolsa. Este não só lhe salvou dos olhares insistentes da senhora, como possibilitou a fuga de sua própria culpa por não ceder aquele acento que mais serviria a um conjunto antigo de músculos e ossos do que ao dela, recém levantado da cama. Pensava, pensava - Estou apenas lendo tranquila, e outra: a mocinha do meu lado tem o quê, cinco, seis anos a mais do que eu, no máximo. E por quê eu teria que dar o acento, e não ela? Onde está a cidadania, e aquele adolescente sentado em frente? Por que esses olhos só metralham os meus? Estou apenas lendo meu livro.
Descendo da estação buscou esvaziar seu pensamento daquela cena, tinha que se concentrar no seu trabalho. Haveria reunião entre os gerentes de marketing do jornal, a redação fica um silêncio nesses dias, como se uma nuvem de ar quente sobrevoasse as seções. Era uma pressão arrebatadora essa do dinheiro, do poder, todos ficavam calados. Ela sempre sentia dificuldades em produzir seus artigos com aquela nuvem passando.
Foi no ponto de ônibus que sentiu culpa novamente. Era o mendigo de todos os dias, vendendo flores - Mas quem iria comprar flores tão cedo? -pensava. Sentia o estômago arder, ao negar a compra de uma rosa por dois reais, argumentando que o dinheiro do ônibus estava contado. Lá vinham as reações fisiológicas: era a boca seca das manhã, o coração levemente acelerado. Obviamente suas notas de vinte reais estavam bem guardadas no fundo da mesma bolsa que continha o livro. Bolsa salvadora. Pensava meio que sem pensar, num lapso.
Foi de relance que percebeu, alguns minutos antes do motorista dar partida, subindo no mesmo ônibus que tomara, uma senhora cujos cabelos brancos chegavam a refletir a luz daquele sol intermitente! A senhora do metrô, a mesma dos olhos duros, intensos, insistentes e ainda assim, tão fatigados - Por que cargas d’água aqueles olhos tinham que ser tão fatigados? - Era ela que subia lentamente com uma rosa na mão. Entre um início de dor de cabeça e um formigamento nas mãos notou: era a rosa do mendigo.
Era a culpa de todas as manhãs.
Paty Souza é nossa nova parceira e trará toda quinta sua visão desse tão sofrido e complexo mundo que vivemos. Para ler outras histórias é só acesso seu blog www.duashistorias.blogspot.com
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