Por Paty Souza
Não que ele fosse infantil, longe disso. Mas seus gestos rápidos e alegres deixavam escapar um furor juvenil que poderia causar inveja a diversas crianças presas em corpos de adulto. Era conhecido com a mais carismática presença daquele mercado de bairro. Diziam que não tinha como conhecê-lo e não querê-lo bem. Que não tinha como não querer entrar de novo na fila de pesar o feijão. E ele pegava-o com tanto respeito. Feijão preto, senhora? Mas é pra já. E colhia do recipiente, nadava suas mãos delicadamente na leguminosa, e enquanto pesava contava um causo do dia. A senhora saía feliz, pensando em que belo jantar serviria.
Certo dia, apareceu um homem de meia-idade, barbicha, com o queixo empinado do jeito que só a arrogância permite empinar. Chegou pedindo muitas coisas. Meio quilo de feijão preto, setecentos gramas do carioquinha, ah me veja um quarto de arroz integral, não me venha pesando para cima que eu não aceito. Jonas atendia com precisão. O homem avermelhava e matutava, incômodo.
Não obstante, decidiu então ir além dos grãos:
- Rapaz, você estuda?
Jonas, com o mesmo sorriso do início do pedido:
- Acabei de me formar em Letras, senhor.
O homem desavermelhava, num prazer intenso de superioridade. Era chefe do Departamento de Letras da Uni Qualquer Coisa. Tinha encontrado um motivo para se sentir quite com sua derrota pessoal.
- Você? Formado em Letras? Ah sim... Claro – Lembrava das vezes que ele repetira a palavra “causo” para contar suas histórias, e moldava seu sorriso de escárnio.
- Sim, em Letras.
- Então me diga...Por que um homem de formação universitária se mantém numa espelunca como essa, porque convenhamos que ou você é louco, está mentindo, ou é burro.
- Olha senhor, vou te explicar - voltando os olhos negros para os do homem - Quando passo a mão nesses feijões brancos flutuo como na poesia em prosa de Clarice Lispector, veja, não há sensação melhor – e enfiava a mão pelos feijões, transmitindo uma sensação de voô em terra.
O barbicha estarrecido.
- Enquanto quando passo a mão nesse milho, duro, pueril, brasileiro, me entrego como Monteiro Lobato em suas obras para as crianças. Ah o milho, amarelo como a infância.
As pessoas se amontoavam na fila, queriam ver de perto o espetáculo. O homem recuava.
- Agora esse arroz branco que aqui está – apontava para um recipiente separado dos outros – esse me remete, e me permita aqui dar um passo para a Filosofia, à arrogância de Friedrich Nietzsche. Separado e deslumbrado, o arroz acha-se superior por ser o preferido do prato brasileiro. Mas esquece que tão logo passa seu prazo, não sai mais. E outra, quem aqui não sabe que o arroz sem feijão é um horror? Só um feijão sorridente poderia curar a arrogância cabisbaixa de um arroz tedioso e esquecido.
Foi nesse momento que toda a fila, que já nem era mais fila, mas sim uma massa de espectadores, começou a bater palmas, assoviar, gritar o nome do rapaz em polvorosa.
Nunca mais se viu o barbicha por aquele bairro.
Mais histórias vocês encontram no www.duashistorias.blogspot.com