quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O Fogo e a Mendiga


Virei a esquina lentamente, e meus olhos se enevoaram com uma bola difusa de fumaça preta vindo de encontro com o ar neutro daquela tarde. Não pude notar, de primeiro momento, tudo o que realmente estava em volta daquele furor reluzente. A prata da pickup se misturava a um preto fúnebre que me prendia, juntamente com o cheiro de desespero que aquela cena exalava.

Ao lado, em frente e por toda a quadra dezenas de pessoas se amontoavam, e depois de sair da minha sensação de torpor, pude imaginar que não seria diferente. Pessoas sentem uma irremediável atração por tragédias. Cada uma vendo no reflexo daquela chama, um pouco de si que também queimava.

Gritos e comentários fervilhavam ainda mais a cena, e o calor daquelas pessoas também passou a me queimar por dentro quando soube o porquê do ocorrido.
- Foi uma mendiga desgraçada que botou fogo no papelão, o fogo se dissipou e o carro começou a pegar fogo.
- É! Pegaremos-na  à madeirada quando a vermos novamente
- Você não viu? – em tom de fofoca - É aquela banguela com dread no cabelo. Acha que pode? Acabar com um patrimônio desses. Eu matava.

Matar alguém já morto – pensei. E olhei para o lado oposto, fugindo daquela cena que já não podia me dizer nada, estava estagnada. Vaguei meus olhos em círculos procurando uma saída, e parei meu olhar  na praça, que ficava do outro lado da avenida principal, apertei os olhos. As vozes aos poucos sumiam, era como se eu me transportasse para o lado daqueles cabelos duros e presos numa velha tiara de cor azulada; daquele corpo dando forma a alguns pedaços de roupa. As mãos que seguravam uma coxa de frango eram sutis – a dor do mundo a ensinou a ser delicada com as coisas ao redor, era de uma delicadeza respeitadora. Pude sentir um tremor naquelas mãos. A boca sorria não de escárnio mas de surpresa por ver aquelas nuvens negras chegando ao topo dos céus. Comia com vontade, era o fruto de sua vontade que a mantinha viva. Era a força dos seus dentes, suas mandíbulas animais que não deixavam seu corpo padecer. Mordia.

Pediu dinheiro a um transeunte e este lhe negou. Falou alguma grosseria. Ela continuou a morder seu pedaço de carne, aceitava aquela resposta com tranquilidade, como que intuindo que não era por mal, afinal nem todo mundo é feliz. Nem todo mundo é feliz - repeti para mim mesmo. O fogo da vida corroía aquela mulher, e não havia funilaria que consertasse tal estrago.

De repente, senti que estava voltando para o mundo do carro queimado, quando ouvi:
- Eu matava
Matar quem sente a morte todo dia até que não é uma ofensa. Perdoei aquela injúria, afinal nem todo mundo é feliz.

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