quinta-feira, 24 de março de 2011

Um Choro na Terra



- Mas eu tenho que ir já?? Como fui escolhido?
Deus, com um meio sorriso que expunha um sarcasmo bondoso, respondeu objetivamente:
- Você tem exatamente o que precisa para ser um humano nato. O que não tem, aprenderá com outros escolhidos.
O sopro ansioso estava confuso, embasbacado com a possibilidade de ter perna, barriga, sentir gosto, dormir. Porém, tinha ainda dúvidas quanto à legitimidade da escolha:
- Mas por quê eu?
Deus então sentou e puxou uma cigarrilha que havia sido trazida por seu filho Jesus. Este nem pra estar aqui me ajudando, o malandro sempre sai quando tem trabalho a se fazer – pensou ele. (Mas seu pensamento era o mundo todo e não fazia questão de ser escondido. A frase soou, então, pelo campo cheio de cores, numa voz firme e acolhedora.)
- Preciso de alguém que se ache o centro de tudo que existe, capaz de criar seitas para me adorar, achando que eu seria capaz de amar unicamente a sua espécie e nenhuma outra.
A outra voz respondeu:
- Moleza, isso eu faço.
E continuou, acendendo sua cigarrilha com restos de uma labareda provinda de uma queimada que havia matado homens, mulheres, crianças, plantas e flores:
- É essencial que possua habilidades de segregação, e que cultive preconceitos. Se você puder escrever e divulgar um livro com regras que te façam sentir bem consigo, mesmo que isso signifique me difamar como um pai incoerente e desigual, melhor ainda. E crie mágoas, feche círculos, construa paredes com o propósito de me adorar mesmo com essa difamação, não esqueça.
- Ah isso tudo é muito fácil.
- Sabia que você não me decepcionaria
O sopro foi se preparando para aquilo que sempre esperou, para o momento que sua eternidade bravamente buscou. E fez a pergunta, imaginando ser a última que faria diretamente a seu pai amoroso e justo:
- Mas meu pai, eu temo te odiar lá de fora. A ilusão pode me confundir, e perder o amor puro que aqui sinto.
- É possível que isso aconteça. Por isso te pergunto: você seria cínico o suficiente para me odiar, por vezes nem me sentir, não amar seus iguais, e buscar refúgio em palavras pré-estabelecidas, cujo significado por vezes você nem entende?
- Seria pai.
- Seria capaz de se casar mesmo sem amor, e trair sua esposa com a vizinha? E mesmo espalhando sofrimento, julgar seu irmão pobre que roubou frutas da venda, por fome? Tudo em meu nome? – a voz ficou de repente, mais grave – nunca se esqueça, tudo em meu nome. Todos os frutos de seus medos, falhas e angústias devem ser covardemente justificados em meu nome.
Após alguns segundos de silêncio:
- Sim, pai, eu seria capaz de tudo disso - pensava ainda na perna, olhos e em todas as sensações que teria.
- Você será um humano legítimo.
O sopro se desfez e um choro de criança pôde ser ouvido num dos cantos da Terra.

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