quinta-feira, 17 de março de 2011

A Senhora do Ônibus



Através do vidro antigo do ônibus, eu observava a paisagem da manhã invadindo a cidade. Um céu de um azul brusco e vivo coloria um dia que se iniciava, enquanto garotas, senhores e crianças se entreolhavam com antipatia, buscando no aperto da passagem do coletivo um motivo para libertar a vida cansada que os atingia. Eu, em minha paisagem interna, menos azul e fresca que a externa, também me desaguava. Era o prazo final para entrega do serviço que eu tinha que já ter finalizado. Tanta responsabilidade me cabe. A conta do cartão de crédito que abusava da minha conta bancária, meu irmão que falhava com meus pais, o amigo que já não estava mais por perto, a colega fofoqueira de trabalho, tão frustrada e negligenciada, cuja essência eu buscava há meses encontrar, mas fracassava. Nuvens e mais nuvens daquilo que de maneira alguma se mostrariam capazes de prever o que eu estava prestes a sentir...

Dois pontos antes de eu descer, vi levantar do assento uma senhora: empregada doméstica de uma antiga casa em que morei, eu bem lembrei dela na hora, porém não do seu nome. Mas foi tão melhor assim, pois não pude etiquetá-la, e não é isso que fazemos todos os dias? Nos etiquetamos como mercadorias, fazendo com que assim raras vezes consigamos verdadeiramente nos enxergar com a humanidade que nos cabe e verdadeiramente nos torna um só.

Felizmente da voz dela eu lembrei, uma voz fina que fazia dueto com seu jeito simples e carismático de gesticular enquanto fala. Olhei para aquele corpo cheio de carne, apoiado em dois chinelos gastos, e colorido por uma pele morena beirando a negra. Cabelos encaracolados ao extremo, e mais da metade deles brancos, entregando uma experiência já adiantada daquela vida que certamente não fora fácil, que certamente não incluiu festas chiques de alto escalão, nem vantagens atingidas através de mestrado, doutorado, pós doutorado; ou através de qualquer curso intensivo em puxa-saquismo. E era isso que me buscava, e tocava-me de maneira a encher de lágrimas uns olhos que andavam secos, áridos como a brusquidão entra as pessoas.

Senti-me vermelha, quente, um bicho em ebulição. A morte em vida talvez seja pior que a morte real, mas pertence ao pacote de condições humanas manter-se em morte, e muitos utilizam essa capacidade com esmero. Mas a senhora não. Em agradecimento e alegria, quase gargalhei olhando para ela, que sorria branda, olhando para um céu azul que ninguém mais parecia notar. Ela estava pronta para limpar mais uma casa. E depois, cansada, voltar para a sua, tirar aqueles chinelos gastos, deitar folgada no sofá; e contar, numa voz cortante, histórias boas para seus filhos.

Mais histórias voces encontram no www.duashistorias.blogspot.com

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